sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

DESACOROÇOADO - José Humberto Henriques

Um dos últimos secretários de Cultura do Município de Uberaba falava com um pavão enfiado na goela: Eu não entendo nada desse assunto. Estou aqui porque o caríssimo prefeito precisa de mim para organizar esta porcaria! Se tinha alguém por perto – normalmente os da imprensa – que pudesse escrever sobre a sua especialidade de não-aficionado, ele refugava da ideia de se dizer despreparado e dizia que não, que não trocaria um livro de Franz Kafka por um daqueles pagodes que tinha que patrocinar de vez em quando – via Fundação Cultural – para garantir o prestígio de sua administração e aquela do prefeito, e para fomentar o gosto popular que ia já bastante rançoso dentro dos domínios da Cidade. Era o que ele dizia. Se não tinha ninguém que fosse perigoso por perto, ele afirmava categoricamente: Que sei eu de Cultura, ó Jesus? Não sei nada. Sou da base aliada do prefeito. Ele precisa de mim para dar nortes a esta porcaria! Foi assim que o ouvi dizer numa tarde de quinta-feira, quando aparava os meus cabelos no Salão Dom Fernandes, na Rua Vigário Silva esquina com a Segismundo Mendes, e ele fazia a barba. Sem os óculos pesados, de aro maciço e escuro que usava sobre a cara, dava a impressão de ser aquele Mister Magoo dos desenhos animados. Eu cortava os cabelos e escutava a prosa do homem. Em algum momento, ele disse: Para que entender de Cultura se isto e Nada é a mesma coisa? O povo precisa de pagode e o prefeito precisa de votos, seja para ser novo prefeito de novo e velho como sempre foi, seja para ser deputado, senador ou secretário do demônio. Se o povo se contenta com pagode, vamos deixar que ele morda a isca mais barata porque voto de intelectual tem o mesmo valor de voto de rafameia. Então, para que gastar isca cara para pegar os mesmos borra-botas que zanzam por aí e vão deixar seu número na urna quando chegar o tempo das eleições? O número um é a unidade de quem vota, seja este ou seja aquele!


Salão Dom Fernandes, dez horas da manhã de uma quinta-feira de um desses anos que passou. Por ser meio saudosista, eu me lembrava do antigo Salão do General, ali, numa daquelas ruas centrais de Uberaba; acho que a Lauro Borges, descendo rumo à Leopoldino de Oliveira. Porém, no tempo do Salão do General, ainda havia o resquício de secretários que eram mantidos no cargo porque podiam fazer alguma coisa para o desenvolvimento da municipalidade e de seu povo. Não havia tal preocupação ferrenha de se querer eleger a qualquer custo um prefeito – de novo, falo da reeleição –, não importa quais armas devam ser utilizadas, somente com a finalidade de se manter o regime de poder, que gruda como carrapato e não quer se desfazer da teta sugada. Desses líderes que se julgam eternos e se tratam – a si mesmos – como deuses disfarçados de promotores do bem público, quando não passam de arremedo da mais pura obscenidade que possa existir dentro de uma administração qualquer. Esse tipo de liderança concentra o poder em mãos de ferro, esquece-se de que a formação de lideranças novas e arejadas pode promover o bem-estar e o desenvolvimento de um povo que foi tratado com pagode em vez de ter sido tratado com progresso e possibilidade de escolha. A possibilidade de escolha é um dos determinantes de liberdade que devem existir entre aqueles que se sabem e se dizem governados. Quando se tira a possibilidade do repertório das criaturas, elas provavelmente vão se ilhar entre o cacoete e a derrota.

É assim que se diz de um mundo cheio de armadilhas.

Enquanto o meu cabelo descia pela tesoura do Dom Fernandes, eu via, pelo espelho, o Mister Magoo, grandalhão e esperto, apregoando as fórmulas que são paridas pelos demônios mais chifrudos, aqueles que têm cabelos nas ventas. Aí, fiquei com aquela palavra de tempo antigo enfiada na minha própria goela:

- Estou desacoroçoado com isso!

E não tinha outra palavra para explicar a minha mais rotunda indignação. Para amenizar o termo da minha derrota e da cidade inteira, disse a mim mesmo que era indignação.
Eu estava desacoroçoado. Era assim que os antigos diziam quando não tinha jeito para a doença.

(*) acadêmico, reside em Uberaba

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